Texts
Bellini e o teatro da morte


Como todo melodrama italiano da primeira metade do século 19, a história da ópera Norma tem como pano de fundo a morte. A morte é o marco, é o ponto em que se desenvolve toda ação humana. Seja devido a guerras, a religião, ao autoritarismo, a um crime, a uma visão fantástica da antiguidade, a morte nos segue de perto, nos cerca.

Não é só isso, mas muito mais, ao se consignar cada ação a tudo que não seja morte, cada ação se torna desesperada. Cada escolha está marcada pelo peso que marca esse abismo. Todos os movimentos da paixão (sejam o ódio ou o amor) estão limitados pela morte. Esse é o limite de tudo que é o desejo. Esse é o limite da existência humana.

Neste sentido, a ópera Norma  leva todos estes  elementos a suas exegeses: das potentes culturas a enfrentar, a obediência cega a uma religião primária e bárbara, baseada no sacrifício à natureza, uma protagonista monolítica que trai aos seus em favor de um amor proibido, secreto e sacrílego.

Uma questão relevante nesse sentido  é que a obra está centrada na ideia do poder ( um poder autoritário e sangrento) das mulheres. Norma é uma figura carismática e poderosa, de complexidade psicológica e por isso de enorme solidão. Somente por meio de sua relação com Adalgisa é que ela consegue sobrepor-se ao mundo de mentiras que ela mesma construiu. A imagem de uma mulher tão poderosa foi tão fascinante em 1831 quanto o é hoje. Ela é o poder, a autoridade religiosa, a chefe militar e a juíza suprema. Ela é também traidora, mulher sacrílega, mãe em segredo e amante enganada.Nesse sentido, com a intenção de apresentar a ópera Norma de um jeito ágil e moderno, buscamos na ação musical uma articulação dinâmica de tempo e entonação das palavras nos recitativos mas a cercamos, ao espírito da tradição do século 18, de  uma visão “retro-wagneriana”. No visual, a ideia é de manter o tom fantástico da narrativa original levando a história a um futuro imaginário, herdeiro do mundo dos quadrinhos  de Enki Bilal. A humanidade devastou o planeta como consequência do somatório de todas as ambições e misérias pessoais.A humanidade está dividida em duas facções: as grandes multidões dos desprovidos e doentes que encontraram refúgio na natureza destruída, a qual veneram. E, do outro lado, uma  elite cultural que vive em pequenas comunidades onde a ciência e a tecnologia sobrevivem e procura reconquistar o planeta.

O ponto essencial é entender que o mundo foi praticamente destruído e as relações humanas são a única coisa  que resta. Este apocalipse tirou da humanidade a possibilidade de possuir coisa alguma. O que sobrou, o que é possível, é salvar as relações interpessoais. A floresta destruída é uma metáfora clara: estamos diante do teatro humano, visceral, carnal e imediato de Bellini onde cada decisão de seus protagonistas não é outra coisa senão a escolha entre a vida e a morte.